BRASIL INTEIRO

Diante de um povo furioso e sem atendimento de qualidade, profissionais da Radiologia recebem salários miseráveis para trabalhar além do que deveriam, sem reconhecimento social

Assessoria de Imprensa do CONTER
11/08/2014
BRASIL INTEIRO

Político do primeiro escalão do governo não usa o sistema público de saúde. Da mesma sorte, filho de governante não frequenta escola pública. Isso é tão certo quanto afirmar que a maioria dos gestores públicos e megaempresários frequentaram as tribunas de honra dos estádios da Copa ou, na pior das hipóteses, passaram os últimos dias em casa confortáveis e bem abastecidos, suficientemente longe do colapso social que está a tomar conta dos serviços públicos. Para as autoridades, a corte dos poderosos e a fartura. Para os servidores das equipes multiprofissionais de saúde, resta as filas de pacientes para atender sem infraestrutura adequada.

A precariedade dos serviços públicos, principalmente, na área da saúde, transportes e educação, chegou ao limite do tolerável e tanto a população quanto os trabalhadores que operam esses setores se sentem atordoados diante do caos. Não por acaso, o país vive em clima de revolta generalizada, que culmina em manifestações, quase sempre reprimidas sem diálogo e com excesso de violência.

De dentro dos hospitais, diante de um povo furioso, sem atendimento e tratado como gado, técnicos e tecnólogos em Radiologia pagam o preço da inversão de valores e se transformam em vítimas desse processo, que compromete o futuro de milhares de famílias. 

Desvalorização profissional e enriquecimento ilícito

Você já deve ter ouvido algumas vezes que, em teoria, o Sistema Único de Saúde (SUS) é o melhor projeto de saúde pública do mundo, mas, na prática, não funciona como deveria, por falta de gestão e investimentos compatíveis com a necessidade da população. A máxima já se esgotou, mas o foco da crítica ainda não. Afinal, existem outros elementos que os governos e a grande mídia ignoram, por mera desconsideração ao aspecto humano dos processos de trabalho. 

Para a presidenta do Conselho Nacional de Técnicos em Radiologia (CONTER) Valdelice Teodoro, o fator que mais compromete a qualidade do atendimento é a falta de valorização e reconhecimento profissional que decorre do processo de sucateamento da saúde pública. “Os governos e empresários não remuneram e nem concedem os benefícios sociais a que os trabalhadores da saúde têm direito. A maioria dos profissionais não dispõe de recursos financeiros suficientes para as suas necessidades básicas. Isso leva o SUS a funcionar aquém do seu potencial, para benefício da iniciativa privada, que assimila esses desvios, comporta a demanda e transforma a saúde em mercadoria, baseada meramente no lucro. O problema não é de investimento, é a maneira como o processo se desenvolve, diz respeito à própria filosofia de trabalho a que estamos submetidos, que beneficia os serviços particulares em detrimento dos interesses da sociedade”, argumenta.

A crítica é fácil de denotar a partir do exemplo dos técnicos e tecnólogos em Radiologia. De acordo com o Supremo Tribunal Federal (STF), o piso salarial dos profissionais das técnicas radiológicas não pode ser inferior a R$ 1.821,75 e, nas regiões metropolitanas, devem atingir patamares de até R$ 3 mil. Contudo, a maioria desses trabalhadores, principalmente no interior, recebe remunerações que beiram o salário mínimo, sem direito ao adicional por insalubridade ou qualquer outro benefício inerente à complexidade da profissão. 

Em maio, quando deve ocorrer o reajuste anual dos salários, baseado na inflação do ano anterior, profissionais de todo o país se manifestam indignados nas redes sociais, para repudiar a distância entre o que recebem e o que teriam direito. Neste mês, por e-mail, o CONTER recebeu 322 contracheques que mostram salários de fome praticados em todos os cantos do Brasil. As pessoas questionam, querem saber por que a lei diz uma coisa e, na prática, acontece outra. 



Enquanto os profissionais que fazem o sistema funcionar padecem desassistidos, os empresários da saúde ficam cada vez mais ricos, e não é difícil entender como isso acontece. “Nós sabemos que existem secretários de saúde, prefeitos e até governadores que criam dificuldades para a implantação de determinados programas que fortaleçam o SUS e, indiretamente, enfraqueçam a rede privada. O motivo é simples: eles próprios são donos de clínicas e hospitais privados ou, de alguma forma, estão relacionados a pessoas influentes ou amigos que o são. Qualquer jornalista pode constatar essas relações facilmente nas cidades, o problema é sistemático e visível”, argumenta Valdelice Teodoro.

Se a grande imprensa verificar a realidade dos hospitais universitários pelo país, vai perceber que naqueles em que os serviços de Radiologia não funcionam, provavelmente, é por que o chefe do serviço é proprietário de clínica particular e, consequentemente, beneficiário direto do não funcionamento do serviço público.

Para se ter uma ideia, de acordo com auditoria feita pelo Ministério da Saúde em 2011, o SUS contava naquela altura com 1.514 mamógrafos em todo o país. Desses, 223 estavam quebrados, 111 com baixa produtividade, 85 com defeito e 27 nunca haviam sido colocados para funcionar, estavam embalados. As outras especialidades seguem a mesma lógica, quando não funcionam e nem são oferecidas nos hospitais públicos, acontece por razões elementares e motivos escusos.

Tudo tem origem no modelo eleitoral. Os empresários da saúde são grandes financiadores das campanhas. São donos de hospitais e clínicas canalizando quantias enormes de dinheiro para políticos que, quando eleitos, são obrigados a inibir as iniciativas do SUS para garantir o lucro da iniciativa privada. Tudo uma questão de valores, que coloca em xeque o direito de acesso universal à saúde da maioria.

Lucro excessivo e precarização das relações de trabalho

O SUS foi criado com três grandes objetivos: promover o acesso universal à saúde, dar a todos a mesma igualdade de acesso e garantir a continuidade dos cuidados. Contudo, a terceirização do atendimento por meio de contratos de gestão firmados com Organizações Sociais (OS) impede avanços neste sentido. Segundo estudo do IBGE realizado em 2012, 50,2 milhões de brasileiros, ou seja, mais de 25% da população é atendida por instituições privadas de saúde. Por outro lado, segundo o estudo “20 anos de Construção do Sistema de Saúde no Brasil”, apenas 58% da população se declara como usuária regular do SUS.

As instituições privadas atendem de acordo com a capacidade instalada, pois são gerenciadas como negócio. Bem diferente do que seria a função de uma unidade de saúde, que é atender a todos sem distinção.

Em geral, os particulares atuam baseados na medicina curativa, e não na prevenção, pois querem receber por tratamentos mais caros. Até podem remunerar bem seus prestadores de serviço, mas precarizam como podem as relações de trabalho.

Ao observar o que acontece com os profissionais das técnicas radiológicas, fica fácil entender por que a busca pelo lucro compromete a qualidade do atendimento que é oferecido à maioria dos pacientes. “Nos últimos doze anos, enfrentamos problemas graves relacionados ao exercício ilegal da profissão de técnico e tecnólogo em Radiologia. Como a lei fixa a nossa carga de trabalho em 24 horas por semana, devido à insalubridade da atividade, empresários inescrupulosos contratam pessoas sem formação ou profissionais de outras especialidades para realizar exames radiológicos. Além de poder laborar 44 horas por semana, esses trabalhadores não têm piso salarial convencionado em lei. O resultado é o sucateamento dos serviços de Radiologia, independente da tecnologia empregada”, coloca a presidenta do CONTER Valdelice Teodoro.

Segundo a Confederação Nacional de Saúde (CNS), a terceirização na área da saúde afronta a Constituição Federal e a Lei nº 8.080/1990. De acordo com a organização, o SUS deve ser prioritariamente público e estatal. O Estado só poderia privatizar o que não é responsabilidade constitucional ou atividade-fim, por assim dizer. No entanto, hoje, mais de 60% dos recursos do SUS são direcionados para a iniciativa privada. O Brasil é o país com a saúde mais privatizada do mundo.

“Precisamos inverter a ordem das prioridades. Entender que saúde pública não é só médico, saber que por trás do diagnóstico e dos cuidados em saúde existe toda uma equipe multiprofissional, com diversos especialistas, que precisam ser igualmente valorizados e reconhecidos. Enquanto não assimilarmos essa realidade, independente do volume de investimentos, continuaremos caminhando na contramão do desenvolvimento e da universalidade. A canalização dos recursos precisa ser otimizada para atingir a quem realmente produz, e não somente a quem especula”, finaliza Valdelice Teodoro.