SEGURANÇA NACIONAL

Grávidas operam máquinas de raios X nos aeroportos de Brasília e de São Paulo

Assessoria de imprensa do CONTER
22/02/2017
SEGURANÇA NACIONAL


Segunda-feira, 23 de janeiro de 2017, oito da manhã: os voos podem até atrasar, mas a rotina é pontual. Máquinas de inspeção sempre ligadas, agentes de segurança cismados e uma fila de gente se prepara para o ritual que segue até a entrada no avião. Hora de decolar, mais um dia normal no embarque do Aeroporto de Brasília, capital do país onde mulheres grávidas operam equipamentos emissores de raios X para fazer a segurança nacional.

Esta é a segunda vez que o flagrante se repete. Na tarde do dia 31 de março de 2015, uma gestante operava um escâner que utiliza radiação ionizante para fazer a inspeção de bagagens no embarque internacional do mesmo aeroporto. Depois de receber uma notificação recomendando o afastamento da funcionária, a Inframérica - consórcio estrangeiro que administra o terminal - respondeu por e-mail que “foi realizado um estudo e a radiação emitida pelos pórticos é equivalente àquela que recebemos diariamente de um aparelho televisor, por exemplo, não ocasionando danos à saúde”. Resposta no mínimo estarrecedora, dada a completa falta de relação entre uma coisa e outra.

Segundo o pesquisador João Henrique Hamann, que é tecnólogo em radiologia e mestre em engenharia de materiais, não existe dose inócua e há risco de efeitos biológicos para o embrião ou para o feto, principalmente, se houver exposição à radiação ionizante sem o controle das doses absorvidas nos primeiros três meses de gestação. "Independentemente da dose, do tipo de radiação e do tempo de exposição, temos um dano que será causado e que pode ou não ser reparado pelo organismo. Portanto, se observarmos sob o aspecto científico da radiobiologia, existe risco à saúde. Principalmente para fetos e embriões, por conta da alta taxa de radiossensibilidade que possuem", explica.

A radiação ionizante é uma onda eletromagnética que tem a propriedade de transferir carga aos elétrons dos átomos que, dotados de energia, podem se tornar radicais livres e induzir quebras cromossômicas. Ao atingir o DNA, por meio do processo de ionização, os raios X agem sobre átomos e moléculas, que podem adquirir sinais elétricos contrários e fazer recombinações anormais. Nos fetos e embriões, esses efeitos são chamados teratogênicos e podem se manifestar tanto no indivíduo quanto em suas futuras gerações.

A radiossensibilidade celular está diretamente relacionada com a taxa de reprodução do grupo celular. Quanto maior a taxa de reprodução, maior a radiossensibilidade. Assim, as células da pele, da tireoide, das gônadas, dos olhos, do sistema gastrointestinal e do sistema hematopoiético são mais suscetíveis aos efeitos dos raios X.

De acordo com as normas da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), os equipamentos radioativos usados para fazer a inspeção de bagagens emitem doses baixas, não oferecem risco à saúde e estão isentos de proteção radiológica. Por outro lado, a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) recomenda que funcionárias gestantes sejam afastadas das atividades com radiação ionizante assim que constatada a gravidez.

O físico Phillip Patrik Dmitruk pondera sobre os níveis de isenção radiológica. "Por norma, a CNEN considera a prática sem risco. Entretanto, no que diz respeito à radiação, a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera todo risco como inseguro para doença de câncer e de ordem genética. É importante que as pessoas saibam que todo indivíduo exposto a qualquer nível de radiação pode ocasionar dano, mesmo dentro das normas de proteção", assegura.

Além do efeito radioativo, quando são conscientes sobre os riscos, as mulheres que engravidam sofrem também o efeito psicológico de serem obrigadas a continuar trabalhando expostas à radiação. “Essas moças gestantes não podem deixar o emprego, pois precisam dele para sobreviver, mas trabalham com medo de acontecer alguma coisa e acabam somatizando agressões físicas e psicológicas que se refletem no organismo e no desenvolvimento do bebê. Elas são indagadas pelos próprios passageiros e confessam que não queriam estar ali, mas são obrigadas pelos contratantes, que são insensíveis em relação ao problema”, esclarece Valdelice Teodoro, presidente do Conselho Nacional de Técnicos em Radiologia (CONTER).

Casos de retaliação contra mulheres que engravidam na área da radiologia são comuns e difíceis de evitar. A técnica em radiologia cearense Neliane Costa Mendes passou pela situação e conta os constrangimentos que sofreu. “Depois de comunicar que estava grávida, compareci normalmente ao local de trabalho, com o objetivo de saber para onde seria remanejada. Após horas de espera, recebi um encaminhamento para conversar com a chefia. Chegando lá, fui informada que a minha nova função seria de digitadora, que trabalharia 20 horas a mais por semana por não ter exposição radiológica no novo cargo e que receberia apenas um salário mínimo durante o período de gestação, sem direito ao adicional de insalubridade”, relata a técnica.

Revoltada com a situação, Neliane tornou o seu caso público nas redes sociais e o episódio repercutiu no país inteiro. Diante da exposição vexatória, uma semana depois o contratante resolveu afastar a funcionária e conceder todos os benefícios a que ela tinha direito. “A minha situação se tornou um símbolo, até hoje mulheres me procuram pedindo ajuda. Muitas estão deixando de realizar o sonho de ser mãe por medo de perder o emprego e ficar sem o sustento da família. Eu fico bem triste com os depoimentos que recebo”.

Existem casos em que o contratante não demite, mas torna a permanência da funcionária insustentável, até a mulher tomar uma atitude severa e sofrer perseguição pelo resto da carreira. “Eu não fui afastada e denunciei no sindicato, pois passei por varias humilhações. Tentaram me forçar a pedir demissão. Eu era a única que não podia comer no refeitório da empresa. Fui mandada para sala em que ficavam os produtos químicos, lá era obrigada a fazer a revelação manual, mesmo tendo todo o recurso digital disponível. Desde que tive esse problema, não consegui mais trabalho, pois sempre descobrem que tenho um processo na clínica onde trabalhava. A justiça não resolveu até hoje”, denuncia a técnica em radiologia Patrícia Ramos Rosa, do Rio Grande do Sul.

“Na minha segunda gravidez, sofri muito. A empresa sugeriu que eu arrumasse um atestado falso com a minha obstetra e conseguisse afastamento pelo INSS, pois grávida eu não servia para nada, só gerava despesa. Eu me recusei a fazer isso e começou a retaliação. Eu fui colocada para operar uma máquina de triturar papeis numa posição física totalmente desconfortável. Depois, me mandaram fazer faxina, mas eu me recusei. Então, me colocaram em pé na recepção, sem cadeira. Quando a situação se tornou insustentável, me deram férias compulsórias. Um mês depois de voltar, fui demitida. Havia sete anos que estava lá”, conta a técnica em radiologia Luciene Rosi, do Espírito Santo.

Toda a desinformação não é por acaso, existe um esforço claro no sentido de esconder evidências sobre o risco de exposição continuada a escâneres de inspeção. Originalmente, as máquinas saem de fábrica com adesivos bastante chamativos, que advertem sobre o uso de raios X. Na maioria dos aeroportos, esses avisos e alertas são simplesmente arrancados dos equipamentos, para não chamar a atenção da população. Essa evidência é fácil de observar em qualquer terminal do país, sem exceção.  

O pior é que, quando uma trabalhadora sofre efeitos decorrentes da exposição radiológica, não é possível perceber ou sequer comprovar a relação de causa e consequência. A maioria absoluta das pessoas não tem a menor ideia do motivo de eventuais estados de saúde, que são atribuídos a conjunções de fatores propositalmente imensuráveis.    

A legislação brasileira assegura o direito de a mulher engravidar quando quiser, sem ser rebaixada de cargo ou demitida por isto. De acordo com a Norma Regulamentadora (NR) n.º 32, aprovada pela Portaria 485/2005, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE):

32.4.4 Toda trabalhadora com gravidez confirmada deve ser afastada das atividades com radiações ionizantes, devendo ser remanejada para atividade compatível com seu nível de formação.

A Norma CNEN-NN-3.01, que estabelece as diretrizes básicas de proteção radiológica no Brasil, diz o seguinte:

5.7.10  Uma  mulher  ocupacionalmente  exposta,  ao  tomar  conhecimento  da  gravidez,  deve  notificar imediatamente esse fato ao seu empregador.

5.7.11  A  notificação  da  gravidez  não  deve  ser  considerada  um  motivo  para  excluir  uma  mulher ocupacionalmente  exposta  do  trabalho  com  radiação;  porém  o  titular  ou  empregador,  nesse  caso,  deve tomar  as  medidas  necessárias  para  assegurar  a  proteção  do  embrião  ou  feto,  conforme  estabelecido  na subseção 5.4.2.2 desta Norma.

5.4.2.2 Para mulheres grávidas ocupacionalmente expostas, suas tarefas devem ser controladas de maneira que seja improvável que, a partir da notificação da gravidez, o feto receba dose efetiva superior a 1 mSv durante o resto do período de gestação.”

Segundo a Portaria Anvisa n.º 453/98, que estabelece as diretrizes básicas de proteção radiológica em diagnóstico médico e odontológico, mas serve como  parâmetro elementar de segurança para todas as áreas de atuação profissional:

2.13 Exposições ocupacionais

b) Para mulheres grávidas devem ser observados os seguintes requisitos adicionais, de modo a proteger o embrião ou feto:

(I) a gravidez deve ser notificada ao titular do serviço tão logo seja constatada;

(II) as condições de trabalho devem ser revistas para garantir que a dose na superfície do abdômen não exceda 2 mSv durante todo o período restante da gravidez, tornando pouco provável que a dose adicional no embrião ou feto exceda cerca de 1 mSv neste período.

Segundo o relatório do grupo de trabalho sobre segurança nuclear da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados:

3.3 EFEITOS DAS EXPOSIÇÃO A BAIXAS DOSES DE RADIAÇÃO

A investigação dos efeitos somáticos como, por exemplo, o surgimento de alguns tipos de câncer e leucemia, levou ao questionamento de um limiar de dose de radiação – abaixo dele não existiriam efeitos biológicos. Hoje é consenso entre especialistas que os riscos da radiação estão relacionados a um modelo linear proporcional. Isto é: não há dose de radiação tão pequena que não produza um efeito colateral no organismo humano. Quanto maior a exposição, maior é o risco dos efeitos biológicos, existindo, assim, uma relação contínua entre exposição e risco. 

Segundo os pesquisadores Giuseppe D'Ippolito e Regina Bitelli Medeiros, autores do artigo científico “Exames radiológicos na gestação”, os efeitos biológicos decorrentes da exposição à radiação ionizante pelo feto podem ser divididos em quatro categorias: óbito intra-uterino, malformações, distúrbios do crescimento/desenvolvimento e efeitos mutagênicos/carcinogênicos:

“A ocorrência desses efeitos depende da dose de radiação absorvida e da idade gestacional. Geralmente, baixas doses de radiação absorvida podem provocar dano celular transitório e passível de ser reparado pelo próprio organismo. Por outro lado, altas doses de radiação podem interromper o desenvolvimento e a maturação celular, provocando a morte fetal ou malformações.

O embrião é mais sensível aos efeitos da radiação ionizante nas duas primeiras semanas de gestação; durante este período, o embrião exposto à radiação permanecerá intacto ou será reabsorvido ou abortado. Considera-se risco de morte fetal neste período quando a exposição for superior a 10 rad (100 mGy). Durante a 3ª e 15ª semanas de gestação (quando ocorre a organogênese), o dano no embrião pode ser decorrente de morte celular induzida pela radiação, distúrbio na migração e proliferação celular. Nesta fase podem ocorrer graves anormalidades no sistema nervoso central, que está em formação (por exemplo, hidrocefalia e microcefalia). Quando o feto é exposto a doses superiores a 100 mGy, podem ocorrer retardo mental e redução de cerca de 30 pontos no quociente de inteligência (QI) para cada 100 mGy acima do limite superior tolerado.

Vários trabalhos têm demonstrado que quando o útero é submetido mesmo a baixas doses de radiação (20 mGy) aumenta o risco de o feto desenvolver câncer na infância, e principalmente aumenta o risco de ocorrência de leucemia, por um fator de 1,5 a 2,0 quando comparado à incidência natural.”

Em resposta ao Ministério Público Federal (MPF), nos autos do Inquérito Civil n.º 1.16.000.000094/2011-62, a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) afirma que os escâneres de inspeção são seguros e não representam risco à saúde por serem dotados de uma cavidade interna, blindada e protegida. Como litigante, o CONTER refutou o argumento, assegurando que “não existe nenhum equipamento de raios X sequer que tenha a ampola geradora da radiação ionizante exposta. Todas são, de fato, internas. Entretanto, não são totalmente blindadas e, muito menos, ‘protegidas’. O fato de a fonte emissora de radiação ficar dentro do equipamento não evita a dispersão dos raios X que são emitidos, é o que se chama de radiação secundária. Em resumo, isso significa dizer que quando um feixe de raios X é acionado e entra em contato com a superfície a que foi direcionado, embora seja colimado, há o espalhamento de radiação ionizante no ambiente. De maneira imediata, não representa risco, pois essa é considerada uma radiação de baixa energia. Contudo, a exposição continuada aos raios X pode ter efeito acumulativo e, em médio e longo prazo, resultar em danos celulares”.

A situação não é exclusividade de Brasília. Em São Paulo, na tarde do dia 23 de dezembro de 2013, duas gestantes operavam maquinas de raios X no embarque do Aeroporto de Guarulhos. Segundo os especialistas, as autoridades responsáveis poderiam realizar o hemograma completo das funcionárias que trabalham permanentemente expostas à radiação ionizante, para fazer a contagem de plaquetas a cada seis meses. Desta forma, seria possível saber se a operação realmente é segura para os grupos de risco.

A Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) foi procurada pela reportagem e respondeu por e-mail que não é responsável pela segurança radiológica das funcionárias e passageiras nos aeroportos, uma vez que a competência de estabelecer os requisitos de segurança para o uso dos raios X é da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). 

Questionada, a CNEN respondeu por ofício que nunca emitiu parecer ou qualquer documento técnico para fundamentar a resolução que regulamenta a contratação das operadoras de raios X nos aeroportos.

Enquanto isso, a situação das mulheres grávidas mostradas na reportagem continua a mesma. Segundo a presidente do CONTER Valdelice Teodoro, as empresas que fazem a inspeção são terceirizadas e ignoram normas de radioproteção consagradas há décadas pela comunidade científica internacional. “Os operadores não possuem formação adequada, recebem treinamento insignificante e não compreendem o básico sobre a operação do equipamento e os riscos associados. Basta ir a qualquer aeroporto do país para ver trabalhadores enfiando a mão dentro da cortina de proteção para desenganchar as bagagens mais leves, com as pernas abertas em cima dos escâneres e desprezando os protocolos de segurança para reduzir a exposição. Em condições ideais de controle e calibração, até concordo que não existiria risco laboral. Entretanto, não é o que acontece na prática”.