ESPECIAL

Os obstáculos que as mulheres enfrentam nas práticas radiológicas

Larissa Lins
05/07/2018
ESPECIAL

Recém chegada a Paris, a jovem Maria, de apenas 24 anos, estava prestes a dar um grande passo para o seu futuro na ciência. Depois de passar anos como governanta em sua cidade natal na Polônia, com o objetivo de juntar dinheiro o suficiente para estudar, ela adotou o nome de Marie e foi morar com sua irmã e seu cunhado na França, para iniciar seus estudos sobre radioatividade na Universidade de Paris. A essa altura, você já deve ter percebido que estamos falando de Marie Curie, uma das maiores expoentes do mundo na área da Radiologia.

Władysław Skłodowski, pai de Marie e professor de física e matemática havia levado instrumentos de laboratório para casa, após autoridades russas proibirem este ensino nas escolas polonesas. Com isso, ele deu uma boa formação científica à filha, que já sabia por qual caminho desejava seguir, mas foi impedida de iniciar sua graduação em seu país, uma vez que as universidades polonesas não admitiam mulheres.

Marie estudava durante o dia e ensinava durante a noite, não conseguia mais que o necessário para se manter e chegou a ter quadros de desmaios por passar fome. Dois anos após sua chegada em Paris, concluiu sua primeira graduação em física, ganhou uma bolsa de estudos e alcançou sua segunda graduação no ano seguinte.

Marie iniciou sua carreira científica em Paris, com estudos das propriedades magnéticas de diferentes tipos de aço. Essa pesquisas foram encomendadas pela Sociedade de Encorajamento da Indústria Nacional (Société d’encouragement pour l’industrie nationale). Neste mesmo ano, conheceu Pierre Curie, que lhe deu acesso a um laboratório, para que ela pudesse realizar suas pesquisas e, posteriormente, lhe deu seu sobrenome, quando se casaram tempos depois.

Em 1896, Henri Becquerel descobriu a pechblenda, uma variedade de uraninita, de cor marrom ou preta e principal constituinte do minério de urânio. Ele incentivou Marie e Pierre Curie a estudá-la e, dois anos depois, em 26 de dezembro de 1898, Marie anunciou a descoberta de uma nova substância à Academia de Ciências de Paris, a qual batizou de Polônio, em homenagem a seu país natal.

Em 1902, um segundo elemento foi puramente isolado e devido à sua intensa radiação, foi batizado de Rádio. Os termos “radioativo” e “radioatividade” foram inventados pelo casal Curie, para caracterizar a energia liberada espontaneamente por este novo elemento químico e eles, propositalmente, nunca patentearam o processo que desenvolveram, para que os elementos pudessem ser cada vez mais estudados por outros cientistas sem embaraços de direito autoral.

Com Pierre Curie e Antoine Henri Becquerel, Marie recebeu o Nobel de Física de 1903, "em reconhecimento aos extraordinários resultados obtidos por suas investigações conjuntas sobre os fenômenos da radiação, descoberta por Henri Becquerel". Foi a primeira mulher a receber tal prêmio. Em 1911, ano no qual a Academia de Ciências de Paris a recusou como sócia, Marie ganhou o segundo Nobel, desta vez de Química, tornando-se a primeira pessoa a receber dois prêmios Nobel, sendo os dois na área da ciência.

Dias antes de receber seu segundo prêmio Nobel, boatos sobre Marie ter traído Pierre Currie foram espalhados pela imprensa e, dado o preconceito da época contra mulheres, estrangeiros e judeus, sua defesa não foi levada em consideração e ela recebeu uma recomendação da própria equipe do Nobel para que não fosse à Suécia, onde receberia o prêmio das mãos do Rei, mas que ficasse na França e a entrega fosse feita simbolicamente na cerimônia.

Albert Einsten se manifestou em sua defesa. “Estou convencido de que você deve desprezar essa gentalha. Se a plebe continua a se ocupar de sua vida, simplesmente pare de ler estes disparates. Deixe isso para as víboras para as quais estas notícias foram feitas”, disse. E, assim, Marie foi a Suécia e recebeu seu prêmio, contrariando o senso comum da época que a condenava e fazia valer muito mais uma parte de sua vida amorosa do que toda uma vida de magníficas contribuições científicas com impacto mundial.

Desde então, as mulheres vêm ocupando cada vez mais espaços políticos e profissionais dentro e fora da área científica, revertendo aos poucos todo o déficit que existe referente à participação de mulheres nas grandes descobertas da ciência. Apesar dos obstáculos, mulheres como Marie Curie inspiram e trazem esperança às mulheres que visam ter uma carreira na área científica e enfrentam desemprego e preconceito no mercado de trabalho.

O desemprego é uma realidade latente para alguns profissionais da Radiologia e, quando se trata das mulheres da área, ele tem uma face que vai além da falta de vagas nas clínicas e hospitais: o sexismo. O termo é usado para denominar qualquer atitude de discriminação fundamentada no sexo; atos sexistas frequentemente se fazem presentes nas relações profissionais das mulheres técnicas e tecnólogas.

Em comparação com os homens técnicos e tecnólogos, a entrada das mulheres no mercado de trabalho é mais difícil. É o que reclama a técnica Maria Cândida Reis. “Mesmo sendo aprovadas em concursos públicos, enfrentamos resistência e desconfiança das equipes”. Até as mulheres que seguem a carreira acadêmica e se tornam professoras afirmam que olhares atravessados ainda acontecem.

De acordo com pesquisa publicada na 33ª edição da Revista CONTER, cujo o tema é a identidade profissional de homens e mulheres técnicas e tecnólogas e as desigualdades de gênero dentro das suas áreas de atuação, é possível observar que, apesar de ter uma quantidade muito próxima de mulheres e homens formados no ramo, 35% das mulheres não possuem nenhum vínculo empregatício, enquanto o desemprego entre os homens fica em torno de 19%.

Muitos empregadores justificam a resistência em contratar mulheres por motivos de força física. Dizem que precisam de profissionais fortes porque os aparelhos são pesados e que mulheres não aguentam fazer rotinas de UTI ou centro cirúrgico. Um agravante muito sério da não contratação se dá com mulheres que trabalham com aparelhos que emitem radiação ionizante. Se uma mulher engravida, ela deve ser afastada imediatamente e os empregadores encaram a gravidez enquanto prejuízo.

Não é difícil ouvir relatos de mulheres que já sofreram alguma discriminação baseada em seu gênero dentro das práticas radiológicas. “Quando entram no setor e perguntam: ‘você que é a técnica responsável?’, como se uma mulher nessa posição de responsabilidade fosse algo incomum ou bizarro e, quando respondo que sim, alguns olham com dúvida”, contou a profissional Samara Silva.

O sexismo não se resume a desemprego. Quando contratadas, as mulheres são impedidas de exercerem sua profissão da mesma forma que os homens. “Lembro bem que para ir ao centro cirúrgico, o médico preferia os meninos, pois alegavam que eu e minhas colegas não conseguiríamos ficar muito tempo em pé no arco cirúrgico. Essa situação mudou quando chegou um chamado no setor solicitando um técnico e eu falei que iria mesmo sabendo que eles não queriam. Entrei, coloquei minha vestimenta e adentrei no centro, falando que seria eu a técnica na cirurgia. Me olharam de cara feia, jogaram piadas, mas lá fiquei. No final, o médico agradeceu e comentou que preferia os meninos, por ter que empurrar o arco, trazer o portátil e, as vezes, precisar de ajuda nas imobilizações”, relatou Janaína Nascimento, técnica que atua na área desde 2009.

As mulheres técnicas e tecnólogas muitas vezes são limitadas a outras áreas de atuação dentro da Radiologia. Segundo a profissional Jaquilene, “depois que nos formamos vem o aperfeiçoamento [especialização] e o recomendado para mulheres é a mamografia. Se há vários aperfeiçoamentos, por que o único recomendado é a mamografia?”. A área da radiologia é extremamente ampla e mesmo que o câncer de mama seja um assunto majoritariamente feminino, as mulheres não deveriam ser limitadas a tratar apenas desse tema.

A qualidade de vida das mulheres que trabalham na área também é menor. Enquanto 32% dos homens têm renda mensal a partir de R$ 4 mil por mês, apenas 18% das mulheres conseguem atingir esta renda e 34% delas não recebe o adicional de insalubridade. Ainda segundo a pesquisa mencionada acima, cerca de 30% dos homens possuem mais de um vínculo empregatício, mas somente 12% das mulheres estão em mais de um emprego. A disparidade de gênero é latente.

Quando se fala das mães da classe, a situação se complica novamente. Os direitos trabalhistas das mulheres grávidas que operam escâneres e outros aparelhos que emitem radiação ionizante ainda são violados. Casos como os que aconteceram nos aeroportos de São Paulo e de Brasília, onde gestantes foram flagradas expostas à radiação ionizante, são infrações graves contra os direitos das mulheres e são classificados como violência obstétrica.

As mulheres que são mães e estão no mercado de trabalho também enfrentam muitas dificuldades. Mãe de dois meninos, um de 9 anos e outro de apenas 6 meses, a técnica em Radiologia Silvia Karina se desdobra em várias. Trabalha no Hospital de Pronto-socorro do Guamá, é presidente da Comissão Nacional de Educação (Conae) do CONTER, é estagiária do Ministério Público Federal e é graduanda em ciências sociais. Silvia leva seus filhos para todos os seus locais de trabalho e estudo, com exceção do hospital. “Já ouvi críticas sim, mas não fico calada. A falta de condições básicas e estrutura para cuidar de uma criança é uma forma silenciosa de repressão às mães que levam seus filhos ao ambiente de trabalho e à faculdade”, denuncia.

Quando os filhos estão em casa, muitas mães enfrentam duplas e triplas jornadas, tendo que cuidar da casa, do trabalho e dos filhos, enfrentando em todos os âmbitos a discriminação de formas diferentes. Nas redes sociais do CONTER, Tatyana, técnica em radiologia e fiscal que combate o exercício ilegal da profissão, deixou sua contribuição para amenizar o problema. “Os homens trabalham com a crença de que as mulheres são incapazes de ocupar e realizar certos trabalhos. A discriminação ao trabalho da mulher é uma realidade no dia a dia. Se não há o preconceito explícito, há pelo menos a ameaça constante da discriminação. Nós mulheres podemos combater esse preconceito nos respeitando acima de tudo e sempre cobrar, com educação formal, para que exista um respeito às nossas diferenças, mas sem nos tornar desiguais”, aponta.

Confira mais comentários das nossas redes sociais:

Janaína Nascimento: Bom, atuo na área desde 2009. Passei em um concurso público temporário e daí por diante não parei mais.

No meu plantão era só eu e outra técnica, o resto eram homens, graças a Deus formamos uma excelente equipe. Mas lembro bem que para ir ao centro cirúrgico, o médico preferia os meninos, pois alegavam que nós duas não conseguiríamos ficar muito tempo em pé no ato cirúrgico. Essa situação mudou quando chegou um chamado no setor solicitando um técnico e eu falei que iria, mesmo sabendo que eles não queriam. Entrei, coloquei minha vestimenta e adentrei no centro falando que seria eu a técnica na cirurgia. Me olharam de cara feia, jogaram piadas, mas lá fiquei. No final o médico, agradeceu e comentou que preferia os meninos, por ter que empurrar o arco, trazer o portátil e as vezes precisar de ajuda nas imobilizações...

Passamos por várias situações, que se não formos profissionais na veia, a gente se arrepende ou fica desanimada em trabalhar.

Hoje atuo tanto na assistência quanto na docência, e como professora atuante lhes digo que os olhares atravessados ainda acontecem.

Digo a vocês mulheres que não desistam de atuar na área. Fácil não é, mas sou a favor do profissional em formação investir em concursos públicos, processos seletivos e cadastrar currículo nos sites de vagas.

Assim como o sol brilhou para mim, tenho certeza que brilhará sim para todas que buscam seu espaço e esbarram nas dificuldades impostas. Se capacitem, que eu tenho certeza que vocês brilharão na Radiologia.

Rivane Diniz de Carvalho: Ontem mesmo um senhor precisou fazer um Raio-X na unidade em que trabalho e ao me ver perguntou: “onde estar o rapaz que vai me atender?”. Eu falei que eu era a técnica e ele disse: ”Mas dá última vez era um rapaz que estava aqui”. Ai, meu Deus, eu não entendo isso. E olha que esse ano faz 10 anos que estou atuando concursada na área de Radiologia.

Elisangela de Paula: Não trabalho ainda, faço estágio, mas sempre ouço que é um trabalho para homens, porque o aparelho de andar é pesado, porque os chassis são pesados, sou mulher ou uma folha de papel???

Luciene Rosi: Estou atuando há 20 anos e há sim discriminação em relação às profissionais. O profissional do gênero masculino é sim mais respeitado e mais valorizado por empresas e pelos profissionais atuantes, mesmo os de outras áreas da saúde. Sigo caminhando e radiografando.

Daniele Neves: Já perdi uma vaga de área, simplesmente por ser mulher!

Juliana Gomes: Sou tecnóloga desde 2016 e até hoje, mesmo eu sendo técnica em enfermagem nesse mesmo hospital, no setor de radiologia me negaram uma vaga, pois me disseram que o setor de Raio-X prefere homens porque pega muito peso. Quem melhor para entender disso do que eu que já sou da área da saúde e pego peso o tempo todo? Discriminação define.

Natalia Alonso: Já recebi paciente na sala que me perguntou “e você sabe fazer isso? ” (Com desdém)

Vanessa Cristina Almeida: Bom a maior dificuldade é a resistência em contratar mulheres. Fiz o técnico. Não satisfeita me formei no superior nunca tive uma oportunidade.... Acho que já está na hora de ser mais justo em relação a isso! É ótimo trabalhar 4 horas por dia e ter uma boa remuneração e com isso poder trabalhar em mais 2 outros lugares..., porém existem pessoas, mulheres que, assim como eu, investiram tudo o que tinham nessa profissão para chegar quase aos 30 anos sem nunca sequer poder exercer o que estudou. O pior cego é o que não quer ver. Não é só porque engravidamos, é por várias questões de interesse!

Rosa Vieira: Olha, o preconceito existe sim, mais na parte dos profissionais e empregadores. Os profissionais por acharem que uma mulher não aguenta fazer uma rotina de uti sozinha e se houver alguma falha já aponta o fato de ser mulher. Os contratantes visam lucros e mulheres devem ser afastadas imediatamente da função que envolva radiação ionizante em caso de gravidez e isso é prejuízo. Mas em compensação temos a mamografia e densitometria óssea que é nossa exclusividade. Não é fácil, mas bora ver algo bom enquanto tentarmos mudar as outras coisas?

Sabe de algum caso assim no seu trabalho? Denuncie nos comentários!