DESCOBERTA CIENTÍFICA

Estudos tentam decifrar por que as pessoas esquecem fatos do início da vida

Paloma Oliveto/Correio Braziliense
13/05/2011
DESCOBERTA CIENTÍFICA

As lembranças estão todas registradas. Mas só no papel. Fotos do primeiro aniversário, da viagem à praia, da chegada do irmãozinho caçula e da estreia na creche são recordações que a mente do adulto não consegue evocar. Como testemunha, apenas os retratos ou os relatos dos pais. Há 100 anos, os neurocientistas tentam descobrir por que o ser humano é incapaz de recuperar as imagens e as sensações de fatos ocorridos na primeira infância, um fenômeno chamado amnésia infantil. Novos estudos mostram que a resposta dificilmente está em um único fator.

Sigmund Freud achava que tinha resolvido o mistério proposto em 1898 por psicólogos franceses ao apostar que as memórias se apagavam porque na primeira infância os pensamentos seriam essencialmente sexuais ou agressivos, e o inconsciente os reprimia. A teoria caiu quando diversos pesquisadores começaram a estudar o fenômeno clinicamente e chegaram a conclusões que não estão restritas ao terreno da psicanálise.

A amnésia infantil está mais relacionada ao funcionamento da mente do que à consciência. “É impossível para um adulto recordar os primeiros anos de sua vida. Na cultura ocidental, a idade das memórias mais antigas é entre 3 ou 4 anos. Então, trata-se de um enigma relacionado ao funcionamento da memória humana”, diz ao Correio a pesquisadora Robyn Fivush, professora da Universidade de Emory e autora de mais de 100 livros sobre a construção da autobiografia.

“A explicação não pode ser o fato de esses eventos terem ocorrido há muito tempo, porque, à medida que envelhecemos, podemos nos lembrar de coisas que aconteceram muitas décadas atrás”, afirma Fivush. Para a pesquisadora Catriona Morrison, da Universidade de Leeds, as primeiras memórias estariam atreladas às palavras. Como crianças muito novas não possuem o domínio do vocabulário, elas teriam dificuldades para evocar as recordações. Mas Robyn, que pesquisa o tema há mais de duas décadas, acredita que isso não basta. “A explicação não pode estar apenas na linguagem, embora essa seja uma importante parte da resposta. As crianças começam a falar com 1 ano, 2 anos de idade, e mesmo assim as memórias não se armazenam até um ou dois anos mais tarde”, alega.

Aí está o verdadeiro enigma, diz a pesquisadora. “Se você perguntar a adultos sobre suas mais antigas memórias, essas serão de quando eles tinham entre 3 e 4 anos. Mas se você pergunta a crianças a mesma coisa, essas memórias serão mais antigas. Crianças de 3 anos podem se lembrar de eventos que ocorreram quando elas tinham 2. Então, por que não recordamos mais desses fatos à medida que crescemos?”, questiona.

 

Busca por respostas

É essa resposta que a psicóloga Carole Peterson, professora da Memorial University of New-foundland, no Canadá, está buscando. Na edição de hoje da revista especializada Child development, ela publica um artigo no qual estuda o fenômeno a partir do depoimento de crianças, ao contrário da maioria das pesquisas, que têm os adultos como foco. Durante dois anos, a equipe de Peterson acompanhou 140 meninos e meninas com idades entre 4 anos e 13 anos que, depois, foram testadas sobre suas memórias mais antigas. Elas também precisaram estimar que idade tinham quando os fatos ocorreram.

Quanto mais novas as crianças, maior a dificuldade elas demonstraram, dois anos depois, de relembrar os eventos que descreveram na primeira fase da pesquisa. Já aquelas entre 10 anos e 13 anos conseguiram narrar os fatos novamente, sem dificuldade. A psicóloga constatou que as primeiras memórias, em crianças muito pequenas, vão sendo substituídas por outras e acabam “apagadas” do cérebro para dar lugar a fatos antigos, embora mais recentes. “As crianças mais velhas têm melhor cognição e habilidade com a linguagem, o que pode ajudá-las a dar sentido a um evento, ou elas também podem ter tido mais tempo para repetir esses fatos, o que as ajudaria a memorizá-los melhor”, afirma ao Correio.

Peterson não sabe, porém, se as crianças que conseguiram evocar mais suas primeiras memórias vão se esquecer delas quando se tornarem adultas. “Essa é uma pergunta importante, mas simplesmente não podemos respondê-la”, admite. Segundo a psicóloga, o artigo foi o primeiro estudo longitudinal sobre amnésia infantil realizado com crianças e, mesmo quando o foco são os adultos, as pesquisas não são tão comuns. “Pessoalmente, acho que as crianças que conseguem se lembrar melhor vão continuar recordando esses fatos quando crescerem”, diz.

 

Poder da conversa

A psicóloga explica que algumas pesquisas realizadas na década passada mostraram que, quando os pais costumam conversar continuamente com os filhos sobre eventos muito antigos, esses têm mais facilidade para construir sua autobiografia quando se tornam adultos. “As crianças aprendem que se lembrar de eventos de suas vidas é algo importante. Por isso, são ensinadas a recordar. Os pais que ajudam seus filhos a desenvolver boas memórias de suas experiências passadas são aqueles que frequentemente falam com eles sobre eventos que ocorreram há dias, semanas, meses e anos”, diz.

Carole Peterson acredita que sua pesquisa vai ajudar a desconstruir mitos sobre a amnésia infantil. “Tradicionalmente, a explicação é que a memória ainda não se formou em crianças muito novas. Outra é que essas crianças não têm habilidades linguísticas para armazenar os fatos. Sabemos que isso é absolutamente errado”, diz. “Em vez disso, o que ocorre é que muitas das memórias antigas estavam lá, mas simplesmente as perdemos com o tempo.”

O esquecimento, de acordo com o estudo da psicóloga, ocorre em um movimento ondular. Crianças de 4 anos a 7 anos lembram-se de eventos muito mais precoces de suas vidas que as mais velhas, mas, com o tempo, são justamente essas recordações que provavelmente vão sumir. “Então, a amnésia infantil não é algo estático. Ela se move. Para mim, o mais interessante sobre nosso trabalho é o fato de algumas das memórias antigas serem retidas. Por que elas e não outras? O que faz com que sejam armazenadas? Eu não sei, mas atualmente estou tentando identificar as razões, comparando os eventos recordados e os apagados da memória de crianças pequenas”, diz.

 

Narrativa

Um estudo publicado na revista Memory mostrou que adultos do povo Maori, da Nova Zelândia, conseguem se lembrar de fatos ocorridos quando tinham 2,7 anos. Uma explicação possível é que, entre eles, é forte a cultura de contação de histórias ocorridas no passado. Desde cedo, as crianças são expostas à narrativa de episódios que aconteceram há muitos anos.